Musculação: número ideal de séries

Apesar do número cada vez maior de estudos que tentam trazer à luz da ciência algumas práticas que são realizadas durantes anos, a musculação, assim como tantas outras modalidades de atividade física, ainda é permeada por uma série de dogmas.

Inúmeras publicações tentaram, e tentam, esclarecer qual o procedimento mais adequado no que tange a segurança e/ou o desempenho interveniente às múltiplas variáveis que definem a musculação. Tarefa árdua, pois muitos ainda persistem no raciocínio cartesiano para na hora de entender como as variáveis se inter-relacionam para responder às mais diversas manifestações do treinamento de força, que na maioria das vezes são analisadas de forma mecanicista o que compromete as conclusões e/ou suposições.
Então, tentando nos desvincular do modo, cultural e histórico, de analisar cartesianamente o contexto geral de um determinado assunto, vamos manter a “mente aberta” para que a leitura das informações contidas neste breve texto contextualize nosso raciocínio em todas as hipóteses que podem exercer decisiva diferença no assunto abordado.

Discutiremos a seguir, a variável que talvez mais provoque desconforto entre os pesquisadores e praticantes de musculação no momento de defini-las dentro de um padrão numérico à que sirva o mais eficiente trato para o desenvolvimento da força e massa muscular. Vamos tratar sobre o número de séries e seus arranjos diversos. Lembremo-nos que tais considerações não pretendem sob nenhum aspecto encerrar esta discussão, tampouco estabelecer verdades absolutas que corre o risco do pragmatismo. Incutir a dúvida saudável, que estimule questões construtivas que dêem contorno às idéias desafiadoras do leitor sobre este tema, é, sim, nossa perspectiva.

Evidências

Um dos primeiros estudos a questionar qual o número de séries seria melhor para promover aumentos na força e massa muscular, foi realizado por Berger em 1962, no qual considerou respaldado pelos resultados colhidos em sua investigação, que a execução de o número de séries maior que um, por exercício, seria o procedimento mais eficiente na promoção dos ganhos de força e massa muscular.

Passados pouco mais de quatro décadas, período no qual a ciência do treinamento de força evoluiu consideravelmente, a descoberta de Berger ainda é utilizada por muitos, se não a grande maioria daqueles que estão envolvidos com a musculação, para fundamentar a prescrição do treinamento no que concerne o número mais adequado de séries dentro de um programa. O estudo de Berger utilizou nove grupos diferentes, com cerca de vinte indivíduos do sexo masculino, em cada. Os indivíduos treinaram três vezes por semana, por um período total de doze semanas. Esta investigação colheu o seguinte resultado: a realização de séries múltiplas (em torno de três por exercício) é a melhor combinação para ganhos em força e massa muscular, embora todas as outras combinações tivessem mostrado promover aumentos significativos nestes parâmetros.

Em 1998, dois estudiosos do treinamento de força, Ralph Carpinelli e Robert Otto, publicaram um artigo de revisão que abordava o tema das séries múltiplas e descobriram que em praticamente todas as publicações científicas (como artigos e livros de fisiologia do exercício) o estudo mais citado para dar suporte à afirmativa supracitada era o de Berger (1962). Todavia, os dois pesquisadores encontraram algumas incoerências interessantes nesta famosa pesquisa: 1) O exercício escolhido para a investigação foi o supino reto, no qual os participantes realizavam diferentes combinações de séries e repetições. Esta rotina foi incorporada ao programa de treinamento regular de cada um dos participantes, que não foi descrito no relatório. 2) Embora três séries de seis repetições (3x6) fossem significativamente melhor que duas séries de seis repetições (2x6), não eram estatisticamente melhores que uma série de seis repetições (1x6); coincidentemente, 3x2 eram melhores que 2x2, mas não eram superiores à 1x2, tampouco houve diferenças significativas para ganhos de força no teste de 1RM entre os grupos 1x6 e 2x6, 1x2 e 2x2, 1x10 e 2x10, 1x10 e 3x10 e 2x10 e 3x10. Carpinelli e Otto (1998) ainda citam um estudo de Berger (1963), no qual ele tenta reproduzir os resultados obtidos na investigação anterior. Cujos resultados entraram em conflito com os anteriores, uma vez que, ao contrário do que afirmava o estudo de 1962, a realização de 3x6, para o mesmo exercício supino, não eram mais eficientes que 3x10 para promover aumentos na força muscular.

Outro estudo regularmente citado na literatura especializada, Kramer e col. (1997), verificou que a execução de séries múltiplas seriam superiores à uma única série para ganhos de força muscular. Os indivíduos desse estudo realizaram sete exercícios, mas apenas o resultado de um, o agachamento, foi relatado para dar suporte a afirmação dos autores!? A questão é: até onde o estudo de Berger (1962) que se vale de apenas um exercício, e o de Kramer e col. (1997) que relata apenas o resultado de um, do total seis exercícios pesquisados, devem ser usado como diretriz para prescrição do número de séries no treinamento de força?
Parece não haver evidências suficientes que sugiram que as respostas às séries múltiplas ou à série única sejam diferentes entre indivíduos treinados e destreinados, assim como populações especiais seriam mais beneficiadas com as séries múltiplas.

Em 2002, Carpinelli publicou outro artigo de revisão, desta vez enfocando apenas os estudos de Berger, no qual demonstra uma série de falhas metodológicas que comprometiam categoricamente os resultados que apregoavam a superioridade das séries múltiplas no treinamento de força e ainda expõe uma série de estudos que demonstravam não haver diferença significativa, para aumentos na força e massa muscular, entre a realização de uma, duas três ou mais séries. Contudo, a informação mais impressionante neste relatório seja o cruzamento entre as referências bibliográficas dos fisiologistas que recomendam a execução de séries múltiplas: cruzando cerca de sessenta e sete referências, Carpinelli descobriu que ou não havia estudos que sustentassem a afirmativa, ou estes usavam como referência a publicação de Berger em 1962. Dentre estes fisiologistas encontramos nomes como Kraemer, Fleck, Stone, Tesch, Guyton & Hall, Fox & Mathews, Enoka, Wilmore, Zatsiorsky, Garhammer, McDonagh & Davis, e assim a lista continua.

Recentemente, Carpinelli (2004) publicou um texto no Jornal Britânico de Medicina Esportiva, com o título de “Science versus opinion” relatando comentários a respeito das críticas que Berger fez ao seu artigo de 2002. Em que possa pesar provas cabais contra a afirmação leviana de Berger de que as séries múltiplas seja a melhor estratégia para o treinamento de força. Carpinelli fornece como referência cinqüenta e dois estudos os quais demonstraram não haver diferença significativa, para ganhos de força e massa muscular, ao realizar séries múltiplas ou simplesmente uma série. Quanto à afirmação de Berger de que há estudos antecedentes comparando diferentes protocolos de treinamento de força, citando apenas cinco estudos, Carpinelli demonstra com clareza que nenhum destes tem relevância na discussão levantada e ainda fornece todos os dados dos experimentos para que não houvesse dúvidas.

Assim, podemos deduzir que realizar mais de uma série é, em última análise, desperdício de tempo? Lembre-se que no início do texto faz-se claro que estabelecer outro dogma, criando um ambiente fértil à construção de outro paradigma, impulsionando a equivocada ideologia das verdades absolutas, não é, e nunca será o interesse deste texto.

Deixar em aberto à discussão, incitando a curiosidade epistemológica do leitor a cerca de tão fascinante assunto é a verdadeira, e simples, intenção dessas linhas. Assim sendo, embora Carpinelli e um cem números de outros autores que tenham demonstrar que não existe diferença significativa entre os dois arranjos (entenda-se séries múltiplas versus serie única) para ganhos de força e massa muscular, há pelo menos um estudo bem controlado que demonstrou a maior funcionalidade das séries múltiplas.

Em 2004, Wolgang e col., publicaram os resultados de seu estudo fornecendo-nos claras evidências a respeito do melhor aproveitamento das séries múltiplas nos ganhos de força em mulheres na fase pós-menopausa, e já com razoável experiência no treinamento de força, embora não tenha sido possível verificar diferenças na composição corporal do grupo controle e do grupo estudo, o que nos leva a crer que o aumento de força se deu principalmente em função de alterações neurais. Concluíram os autores, baseados nos dados colhidos, que se a força muscular, nesta população é o objetivo principal, o arranjo das séries múltiplas deve ser levado em consideração.

Considerações finais

Fica evidente que os paradigmas vigentes no campo do treinamento físico estão cada vez mais, sendo questionados, e que suas “inexoráveis verdades” não devem ser um empecilho àqueles que buscam soluções para os mais variados problemas nessa área. Parece que no treinamento de força, apesar do número crescente de pesquisas sérias, estes paradigmas persistem em manifestar-se. Nos falta então, perguntarmos sempre se as informações que nos chegam, por mais criteriosas que pareçam, é a expressão de uma ciência séria, e não puro cientificismo, com o atributo que talvez melhor defina a verdadeira ciência, a imparcialidade em prol da verdade, seja ela qual for.




Por Victor Meloni

Referencias Bibliográficas

Carpinelli RN; Otto MR. Strength training: single versus multiple sets. Sports Med. 26(2):73-84, 1998.
Carpinelli RN. Berger in retrospect: effect of varied weight training programmes on trength. Br J Sports Med. 36: 319-24, 2002.
Carpinelli RN. Science versus opinion. Br J Sports Med. 36:240-43, 2004.
Kemmler WK; Lauber D; Engelke K; Weineck J. Effects os single-vs. multiple-set resistance training on maximum strength and body composition in trained postmenopausaul women. J Strength Cond Res. 18(4):689-94, 2004.
Kraemer JB; Stone MH; OBryant HS; Conley MS; Johnson RL; Nieman DC; Honeycutt DR; Hoke TP. Effects of single vs. multiple sets of weight training: impact of volume, intensity, and variation. J Strength and Cond Res. 11(3):143-47,1997.

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