Gordura Corporal Inicial e Mudanças na Composição do Corpo

Durante muitos anos (décadas?) era comum a sugestão de que deveria-se tentar ganhar massa muscular antes de se começar uma dieta. Pessoas bem intencionadas sugeriam que você gastasse 3-4 semanas ou mais treinando pesado e comendo bem para ganhar massa muscular. O objetivo era aumentar o metabolismo para que a dieta funcionasse melhor.

No entanto, os dados atuais indicam que cada quilo de musculo queima apenas 13 calorias a mais (os valores antigos eram de 50-80 kcal/kg ou até mais) (1), esse argumento não é mais sustentável; para afetar o nível metabólico significantemente, seria necessário um ganho de massa muscular monstruoso, muito mais do que o possível em 3-4 semanas.

Mesmo se você ganhou 5 kg de musculo, o nível de calorias queimadas por dia iria aumentar em apenas 65 calorias, uma quantidade muito baixa para afetar a dieta. Não estou dizendo que as dietas não funcionam melhor após períodos curtos e médios de superalimentação, mas simplesmente não é por causa dos ganhos de massa muscular.

Uma ideia mais recente presente na nutrição de fisiculturismo é a de que antes de tentar ganhar massa magra, deve-se realizar uma dieta para perda de peso primeiro. Essa teoria é baseada em pesquisas que observaram as mudanças na composição corporal que ocorrem quando superalimenta-se um indivíduo magro ou gordo (ver referência 2).

Uma Cartilha Sobre o P-Ratio

A recomendação acima é baseada em pesquisas sobre o P-ratio (nível de particionamento) que basicamente representa a proporção de proteína (massa magra) ganha em relação ao peso total ganho (essa não é a definição técnica de P-ratio, estou apenas simplificando um pouco).

Muitos fatores controlam o P-ratio, incluindo genética, hormônios, dieta e treino (numa escala menor do que você imagina) e provavelmente algo que estou esquecendo (3). Mas em geral, o preditor do p-ratio é o seu nível de gordura corporal inicial. Basicamente, seu BF inicial prevê a grande maioria do que você vai perder/ganhar quando começar uma dieta hipo ou hipercalórica (4).

Então, quando se faz uma dieta para perda de peso, quanto mais gordo você é, menos massa magra (e mais gordura) irá perder. Faz sentido em termos evolucionários, quanto mais gordura você precisa perder, o corpo pode perdê-la sem ter de queimar tecido muscular; quanto mais magro você fica, menos gordura você possui e acaba perdendo mais músculo. Qualquer um que faz dieta e tem menos de 10% de BF sabe que isso é verdade: quanto mais magro, mais massa muscular é perdida.

E o overfeeding e ganho de peso? Basicamente, o processo é o mesmo, mas ao contrário: pessoas magras tendem a ganhar mais massa magra e menos gordura, enquanto pessoas gordas tendem a ganhar mais gordura e menos massa magra. Isso faz sentido. O indivíduo gordo perde muita gordura e pouca massa magra quando faz dieta e ganha muita gordura e pouca massa magra quando faz overfeeding enquanto com indivíduo magro acontece o contrário. O P-ratio é constante em ambas as direções. Ou seja, o P-ratio parece ser constante para um mesmo indivíduo (5).

Então, tipicamente, quando fazem “overfeeding”, indivíduos magros ganharão 60-70% de massa magra enquanto indivíduos gordos ganharão apenas 30-40% de massa magra. Notem que esses percentuais são sem a realização de exercícios, simplesmente com overfeeding de um BF inicial. Apesar da pesquisa não ter examinado o overfeeding tanto quanto o underfeeding, espera-se que um treino intenso possa melhorar esses números ainda mais.

Até agora tudo bem, parece que quanto mais magro você é, a sua composição corporal irá mudar com níveis melhores durante o overfeeding. Então fique magro, treine e coma e você deverá ganhar grande quantidade de massa muscular, certo?

O Problema: Pessoas Naturalmente Magras VS Pessoas que Fizeram Dietas

O problema com a análise acima, é que existem diferenças significativas entre pessoas que são magras naturalmente (nas quais o teste de overfeeding foi feito) e indivíduos que emagreceram com dietas.

Vamos considerar, por um segundo a fisiologia dos que são magros naturalmente. Baseado na Hipótese Genética (3), nós esperaríamos status hormonais muito bons em termos de níveis de tireóide, cortisol baixo ou normal, talvez níveis decentes de testosterona, GH e IGF-1. Eles provavelmente possuem um sistema nervoso normal e a habilidade de aumentar oxidação de gordura quando as calorias são aumentadas.

Nós provavelmente esperamos que eles tenham um metabolismo rápido (6), um que acelera em resposta ao overfeeding para queimar as calorias em excesso. Não seria surpresa se eles fossem os que mostrassem um grande nível de Termogênese em repouso (NEAT, 7) que é o que permite que eles queimem o excesso de calorias sem ficarem gordos. Tudo isso, quase certamente com outros fatores contribuem para a falta de gordura durante overfeeding. É claro, se o ganho de gordura é limitada durante o overfeeding, significa que qualquer ganho de peso tende a ser massa magra, como os dados do P-ratio acima indicam.

O problema é que o perfil fisiológico acima não descreve os indivíduos que emagreceram para um percentual de gordura corporal baixo. Ao invés disso, indivíduos que emagreceram mostram uma biologia que se foca apenas em retornar a gordura corporal perdida. Tipicamente, as consequências metabólicas da dieta incluem um metabolismo reduzido, oxidação de gordura diminuída, atividade da lipase sensível a hormônio reduzida, atividade da lipase lipoproteina aumentada, status hormonais comprometidos (incluindo baixos níveis de testosterona e altos níveis de cortisol), termogênese diminuída devido a redução nos níveis de tireóide e da saída do sistema nervoso, além de outros defeitos metabólicos. Tudo isso contribui para tornar a perda de gordura mais lenta durante a dieta e fazer com que a gordura retorne rapidamente quando o indivíduo volta a comer normalmente.

Por exemplo, no estudo clássico de fome (o estudo de semi-fome de Minnesota) homens participaram de dietas durante 6 meses e alcançaram um nível de gordura corporal de 4-5% no fim da pesquisa. Eles foram realimentados e a composição corporal foi acompanhada. De acordo com a teoria, eles deveriam ganhar muita massa magra e pouca gordura durante este processo, eles estavam muito magros para começar. Mas isso absolutamente não aconteceu.

Como pode-se esperar, baseado nas adaptações metabólicas a dieta, seus corpos estavam preparados para repor os estoques de gordura. Redução no nível metabólico, oxidação de gordura e termogênese contribuíram para um ganho de gordura corporal e esses sistemas não pararam até que toda a gordura perdida foi recuperada (8). De fato, sinais da gordura corporal (leptina e o resto) são os mecanismos por trás dessa fisiologia (9).

A conclusão é de que, em indivíduos que fizeram dieta, o corpo está preparado para ganhar gordura ao custo de massa magra para repor o que perdeu durante a dieta. Novamente, isso é fundamentalmente diferente do que acontece quando indivíduos geneticamente magros comem mais.

E mesmo se essa pesquisa não fosse realizada, qualquer pessoa que fez dieta para alcançar um nível baixo de gordura corporal pode comprovar o que foi dito acima. Independente das teorias sendo defendidas pelos indivíduos olhando os dados na Forbes sobre P-ratio, o fim da dieta é o período em que se ganha gordura corporal mais facilmente. Até mesmo uma pequena observação do mundo real iria mostrar por que essa teoria está incorreta.

Agora me Veja Recuar um Pouco

Tendo mostrado a você por que eu acho que a ideia de ficar magro primeiro irá magicamente permitir que você consiga ganhar massa magra sem ganhar gordura, eu vou recuar e dizer que isso não significa que eu pense que fazer dieta antes é sempre uma má ideia. De fato, podem existir razões muito boas para fazer dieta antes de ir para a fase de ganhar massa. Essa apenas não é a razão que muitos estão defendendo.

Uma das razões de fazer uma dieta antes de ganhar massa é a praticidade. Se você quer competir em um campeonato de fisiculturismo, você precisa ser magro o suficiente no começo (10-12% BF para homens) para ter uma chance de se preparar a tempo. Isso significa manter a gordura corporal controlada fazendo dieta antes de tentar ganhar massa muscular. Similarmente, se você quer ficar magro apenas pela estética, você precisa manter sua gordura corporal sob controle.

Explicando: se você começar uma fase de ganhos de massa com uma gordura corporal muito elevada (digamos 12-15%) você vai ganhar um pouco de gordura durante essa fase e acabar ficando gordo. Isso faz com que abaixar o seu percentual de gordura seja difícil. É melhor manter as coisas sob controle alternando períodos de ganho e de cutting.

Também, parece que quando a gordura corporal chega na margem dos 15% para os homens, os ganhos de gordura tendem a acelerar durante as fases de ganhos de massa. Eu suspeito que isso seja devido ao desenvolvimento de resistência sistêmica à insulina, o que faz com que as calorias se transformem em gordura mais facilmente. Mantendo o nível de gordura corporal abaixo disso pode ajudar.

Eu devo mencionar que foi sempre uma ideia baseada em observações que os ganhos de massa eram melhores com gordura corporal de aproximadamente 10-12% (para homens, 9-12% a mais para mulheres). Eu sempre considerei isso uma desculpa para continuar gordo, mas suspeito que provavelmente está próximo do correto. Baseado no que está acontecendo hormonalmente e fisiologicamente a níveis baixos e altos de gordura corporal, esse deve ser um ponto ótimo para ganhar massa muscular. Você está alimentado e saudável o suficiente para treinar bem e ter ganhos mas não tão gordo que outros problemas apareçam.

Recomendações Práticas

Ok, chega de teoria. Baseado nas informações acima, aqui está o que eu normalmente recomendo a fisiculturistas ou atletas que querem ganhar massa muscular (ou seja, todos eles).

    Se você está acima de 15% de gordura corporal (24-27% para mulheres), faça uma dieta hipocalórica primeiro. Se você chegar aos 10-12%(19-24%), eu acho que você vai estar em uma melhor posição para ganhar massa muscular. Tentar ficar super magro irá acabar ferrando você a longo prazo porque seu corpo vai se forcar a recuperar a gordura perdida (e muitos outros sistemas fisiológicos são comprometidos também) quando se fica super magro.

    Após terminar sua dieta, independentemente do quão magro você fique, tire 2 semanas para comer a níveis de manutenção de caloria antes de começar a fase de ganhos de massa. Isso tem a ver com a adaptação fisiológica à dietas, descrita acima. Mesmo que você não possa reverter todas as adaptações, 2 semanas em manutenção, que devem ter mais calorias do que você estava comendo em sua dieta, ajudarão a normalizar algumas delas. Leptina, tireóide, saída do sistema nervoso simpático deve melhorar um pouco, junto com outros hormônios, colocando você em uma posição melhor para ganhar massa sem ter ganhos excessivos de gordura. Tenha certeza de ingerir pelo menos 100g de carbos por dia ou mais durante essa fase para a tireóide voltar à ativa.

    Apenas tente ganhar massa até alcançar o topo da margem do nível de gordura corporal citada no item 1 acima. Isso é aproximadamente 15% de gordura para homens e 24-27% para mulheres. Isso significa que você deve fazer dieta até chegar a 10-12% de gordura para homens e 22-24% para mulheres, comer para manutenção por duas semanas para normalizar as coisas, então adicionar massa até que alcance 15% de gordura corporal para homens e 22-24% para mulheres; então faça dieta para descer o percentual novamente. Após um numero de ciclos, você terá aumentado sua massa muscular e mantido sua gordura corporal sob controle.


Resumindo:

Então aí está, uma olhada em como o percentual de gordura inicial pode afetar as mudanças na composição corporal. Ao contrário das interpretações da literatura, indivíduos que fizeram dieta para abaixar seus níveis de gordura corporal não ganham muita massa magra magicamente. De fato, o oposto acontece. Após uma dieta longa, o corpo prioriza ganho de gordura.

Porém, isso não significa que fazer dieta antes da fase de ganhos de massa seja uma má ideia e ficar magro antes do bulking é provavelmente a melhor estratégia para o bodybuilder natural.

Por Lyle McDonald, tradução por Jlcs e revisão por Mpcosta82 e Marc01


Referências Bibliográficas:

    McClave SA, Snider HL. Dissecting the energy needs of the body. Curr Opin Clin Nutr Metab Care. 2001 Mar;4(2):143-7.
    Forbes GB. Body fat content influences the body composition response to nutrition and exercise. Ann N Y Acad Sci. (2000) 904:359-65.
    Bray GA. GENETICSS hypothesis of nutrient partitioning. Progress in Obesity Research:7 (1996) 43-48.
    Dulloo AG, Jacquet J. The control of partitioning between protein and fat during human starvation: its internal determinants and biological significance. Br J Nutr. (1999) 82:339-56.
    Dulloo AG. Partitioning between protein and fat during starvation and refeeding: is the assumption of intra-individual constancy of P-ratio valid? Br J Nutr. 1998 Jan;79(1):107-13
    Weyer C et. al. Changes in energy metabolism in response to 48 h of overfeeding and fasting in Caucasians and Pima Indians. Int J Obes Relat Metab Disord. 2001 May;25(5):593-600.
    Levine JA. Role of nonexercise activity thermogenesis in resistance to fat gain in humans. Science. 1999 Jan 8;283(5399):212-4.
    Dulloo AG et. al. Autoregulation of body composition during weight recovery in human: the Minnesota Experiment revisited. nt J Obes Relat Metab Disord. 1996 May;20(5):393-405.
    Dulloo AG, Jacquet J. Adaptive reduction in basal metabolic rate in response to food deprivation in humans: a role for feedback signals from fat stores. Am J Clin Nutr. 1998 Sep;68(3):599-606.

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